quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Autobios I


Quando eu era criança tinha um monte de questões, dúvidas. Claro! Eu costumava pensar de que maneira eu saberia que a menina que eu namorasse seria a mulher da minha vida (mal imaginava que saberia disso sem saber), como eu seria aos 22 anos no ano 2000 (isso se os donos do poder com os telefones e botões vermelhos e brancos – ou azuis – não acionassem as armas nucleares no meio do oceano e acabassem com o mundo), lidando com meu trabalho burocrático de terno e gravata e com automóveis que voariam ou, no mínimo, teriam movimentos direcionais nas quatro rodas... Ah, e seriam dois carros: um para trabalhar e outro para passear com a família nos finais de semana. Não pensava em nada além disso. A vida adulta seria ter uma mulher e filhos, um carro e 22 anos de idade. Parecia que nunca iria fazer 23.
Hoje tenho 33. Acertei na menina. O mundo não acabou numa explosão atômica, não tenho emprego burocrático e os automóveis não voam e nem tenho que me preocupar com isso pois não tenho automóvel, nem sequer sei dirigir. O filho (assim no singular, porque hoje ninguém mais pensa em ter vasta prole como antigamente) ainda não veio, pois a chefia superior deste departamento da vida, que decide essas questões, talvez  não tenha me considerado maduro o suficiente para a paternidade ou mesmo digno disto.
Tenho 3 sobrinhos. Uma sobrinha na família em que nasci - mas que é como uma irmã mais nova pois temos quase a mesma idade - e outros dois - um adolescente e uma menininha de 3 anos, muito esperta! - na família que escolhi. Com a primeira aprendi a ser irmão - já que com minhas irmãs aprendi a ser filho – e com os outros dois venho ensaiando a paternidade, pelo menos a paternidade tal como eu a imaginei, talvez a paternidade sob a ótica do filho e também sob a visão do educador que me tornei.
Meu pai morreu em 2008. Morreu perturbado psicologicamente, no ano em que completaria 92 anos, achando que eu roubava seu dinheiro e desejava a sua morte. Nesse mesmo ano fui aprovado, depois de 2 tentativas fracassadas num processo seletivo de mestrado para uma universidade pública. Cursei um ano e meio e não consegui concluir.
“Se meu filho nem nasceu, eu ainda sou o filho”... essa música do IRA!, desde a minha infância mexe comigo, exatamente nesta frase. Quero muito ter uma filha ou um filho, e quero muito ser bom pai. Não penso no filho como alguém que me amparará na velhice, como uma garantia contra a solidão. Penso num filho como mais alguém no mundo, como se fosse um presente que eu estivesse dando para a obra da construção de um mundo melhor, alguém que pudesse levar adiante uma história familiar que, por mais comum e banal que seja, tem um cheiro único, um vocabulário, uma memória, um código, um amor únicos... isso não pode morrer.
Minha mulher e minha mãe são os grandes amores da minha vida. Minha mãe me surpreende a cada dia, ainda mais agora que me tornei adulto, ela virou minha grande amiga. Não sei como suportarei sua ausência, após a sua morte. Ela já tem quase 80 anos, um colesterol altíssimo e uma teimosia maior ainda. Duas heranças que trago comigo. Aliás, agradeço muito a meu pai e minha mãe por terem me deixado de herança a vontade de saber fazer tudo, um olhar renascentista sobre as coisas... me deixaram de herança a total ausência de preconceito que separa o trabalho manual do intelectual. Marxismo intuitivo.
Escrevo esse texto a 1h33min do dia 28 de setembro de 2011. Hoje foi dia de Cosme e Damião e a única evidência disso foi uma Maria-mole pisoteada pela calçada... nada daquela correria de crianças atrás de doces que vivi na época das dúvidas e dos carros voadores.
Sou um servidor público federal em greve e amanhã cedo vou a casa de minha mãe para um trabalho artesanal e sentimental. Vou trabalhar nas obras do nosso barracão.
O barracão é uma construção nos fundos de nossa casa que já existia antes do meu nascimento. Meu pai tinha uma empresa de bebidas chamada “Ideal bebidas” que revendia refrigerantes e desdobrava aguardente bruto em várias bebidas com sabores: menta, mel, etc... Então o barracão era uma construção que abrigava um enorme barril de madeira fixo no chão, cheio de aguardente e todos os litros de essências e os diversos equipamentos para a alquimia da fabricação destas bebidas. Nos anos 80 a Ideal faliu e o barracão começou a se transformar em ruínas. É uma construção de tijolo maciço aparente e telhado... o telhado já se foi. Restam apenas 3 colunas de tijolo maciço e um pequeno cômodo fechado, um quarto, que sempre foi usado para guardar entulho.
Quando criança morria de medo do barracão à noite. Por outro lado as melhores lembranças que tenho do meu pai estão relacionadas a ele. Era lá que ele consertava meus brinquedos e fazia minhas setas (estilingues). Minhas setas eram feitas de forquilhas de goiabeira e tiras de borracha recortadas de câmaras de ar. Depois comecei a ver os meninos da rua usando setas feitas com borrachas amarelas chamadas de “borracha de soro” ou “tripas de mico”... fiquei chateado e achando que as minhas setas de borracha preta não eram legais... eis que meu pai pegou uma vara de alumínio e dobrando-a construiu uma forquilha maravilhosa, revestindo o cabo com um pedaço de tubo PVC preto e colocando as tais borrachas amarelas. Nossa! Ninguém tinha uma seta igual a minha!
Ao mesmo tempo, ninguém usava a seta como eu, ou melhor, eu não usava a seta como os outros. Todo mundo tinha seta pra caçar rolinhas e eu tinha pena dos passarinhos e usava a arma para atirar em alvos, geralmente eram latas de Nescau, Toddy e Neston.
Gostava muito de assar castanhas de caju no quintal. Pegava cinco tijolos lajota e colocava um no fundo e dois em cada lateral e fazia uma espécie de fogão. Enchia de galhos secos e acendia (hoje um menino de 11 anos de idade não faria isso porque os pais não permitiriam)... com o fogo alto jogava as castanhas lá dentro e assistia ao seu espetáculo. Elas estouravam liberando um jato de líquido quente e faziam o barulho de uma panela de pressão. Depois de ter a casca bem queimada, toda preta, eu retirava as castanhas do interior da fogueira utilizando um graveto e começava a quebrar a casca utilizando as pedras que estivessem ao alcance. Comia todas elas ali mesmo, com as mãos sujas de carvão, debaixo dos pés de laranja tanja e do enorme pé de cajá...