segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Penha (Sobre Meninos e Lobos)

O bairro da minha infância não existe mais. Quando passo por lá me sinto um estranho no ninho. Não conheço mais as pessoas. Os velhos já se foram, muitas migrações ocorreram, o processo de ocupações desordenadas, loteamentos chamados “nova” isso ou “nova" aquilo, sem saneamento... os “casarões” daqueles mais abastados de minha infância (o dono da farmácia, o dono da mercearia...) agora estão tomados por limo e mofo, ocupados por estranhos.

As crianças do bairro da minha infância não brincam mais nas ruas. Não há mais aquele terreno baldio que, por um mutirão, foi transformado num campinho, onde memoráveis peladas ocorriam todas as tardes depois da escola. Muitos não frequentavam a escola, mas ali no campinho, todos se misturavam, sem problemas (o filho do dono da farmácia, do dono da mercearia, eu, e muitas outras crianças cujos pais não se sabia muito bem o que faziam, e certamente não eram donos de nada. Mas eram todos crianças, isso era o que importava). Hoje as crianças de lá são tristes e muitas. Tantas crianças que acabam parecendo todas iguais. São os filhos das crianças do bairro da minha infância. Não sei se têm carinho dos pais, se aprendem a não jogar lixo no chão, a respeitar os mais velhos, a serem honestos, justos, não sei se tomaram todas as vacinas, se pegaram caxumba ou sarampo, não têm mais campinho, não brincam de pique-bandeira, esconde-esconde, se catam os besouros debaixo dos postes, nem sei se brincam. Na verdade as vejo como mini-adultos abandonados, sem um mundo só seu, mas sim uma simplificação do mundo dos adultos. Não tem mais música infantil, programa infantil (de parque, de praça, de TV)... não têm armas de brinquedo, não vêem filmes de terror, não podem fazer nada (E são muito mais violentos que eu). Não podem ouvir um "não". Assim como as armas, não têm mais telefone de brinquedo, mas sim um celular de última geração, que toca música (num alto-falante de péssima qualidade, por sinal), tira foto (com uma péssima definição), é vara de pescar, canivete suíço, bote salva-vidas, e ainda por cima serve pra falar com alguém, mas no caso das crianças, não serve: geralmente é de cartão e não tem crédito ou mesmo não têm ninguém pra falar.

Depois, essas crianças do bairro da minha infância tornam-se jovens. Os jovens de lá me entristecem muito. Lá tem um lugar onde eu sempre ia quando estava triste ou alegre, quando estava sozinho. Passava horas, observando tudo ao redor, em paz. Hoje, só sinto tristeza. Tristeza e medo. Soube que o tráfico de drogas destruiu a vida da maioria das crianças do bairro da minha infância. Tinha um menino que morava em frente a minha casa, chamado Juninho. Juninho sabia fazer pipas (naquele tempo, não tinha essa história de comprar pipa pronta. O legal era confeccionar a sua própria.) e as pipas dele eram bem ágeis, pequeninas, boas para as acrobacias no ar. Ele fazia pipas pra mim e passávamos algumas horas no fim do dia, depois da minha escola (ele não estudava), soltando pipa. Era divertido. Depois, com o passar dos anos, na adolescência, Juninho foi trabalhar com o pai como ajudante de pedreiro; depois o pai largou a família; depois não vi mais Juninho. Tinha outro menino, “Fofão”, que tinha um irmãozinho franzino, um bebezinho que brincava com a gente na rua. Éramos meninos de 12, 13 anos, e o irmãozinho do Fofão devia ter uns 3, e de chupeta e fralda na mão, acompanhava a gente nas brincadeiras. Há muito tempo não vejo o “Fofão”, muito menos seu irmãozinho.

Hoje, visito o bairro da minha infância raramente, um domingo ou outro, pra almoçar com minha mãe. No último domingo ela ria das rugas em meu rosto, meus pés-de-galinha, e perguntou a minha mulher se eu não tenho usado creme anti-rugas. Eu tenho 30 anos, quase 31. Quando eu nasci, minha mãe tinha 43. Pra ela isso era um escândalo em 1978, afinal de contas, ela tinha uma filha que estava pra se casar e outra com 12 anos de idade. Como podia? A filha noiva, de casamento marcado, e ela, uma senhora de 43 anos (naquela época, à partir dos 40 você já era considerado velho), grávida! Ela conta que olhava pra mim quando criança e se perguntava se viveria pra me ver na escola. Ainda nos emocionamos com isso, sobretudo agora na minha luta de pós-graduação. E ela rindo das minhas rugas, dos pés-de-galinha daquele menino que ela temia abandonar cedo.

Eu fui à escola, mas os meninos do bairro da minha infância não. Alguns (poucos, talvez 3 contando comigo) conseguiram seguir nos estudos, cursar o ensino superior; alguns conseguiram se tornar policiais militares e hoje têm a difícil tarefa de perseguir seus colegas de infância, que jogavam pelada naquele campinho em belas tardes. Outro dia, o Ricardo*, que é PM, me contou que quem comanda o tráfico por lá é o irmão do “Fofão”. Lembram dele? O menininho franzino de 3 anos de idade, com chupeta e fralda? Pois é, hoje é conhecido como “Pão” e dizem que é um ótimo atirador. O Juninho, que fazia pipas pra mim, quase foi morto a facão dia desses. Motivo? Vingança, por estar envolvido na morte do principal traficante da área, disputando boca de fumo.

Soube disso tudo hoje, em minha casa, pelos pedreiros que reformam meu banheiro. Pedreiros que eram meninos do bairro da minha infância.


* Nome fictício

11 comentários:

Ana Paula Motta disse...

Caramba!! Que texto lindo,eu me emocionei,sabe como sou chorona e com um post desses não dá pra passar sem refletir,sem sentir o clima.Maravilhoso!!

Pedro Cavalcante disse...

eu que li esse texto antes de vc publicar e elogie, gostei deste texto ter virado um post. e vim aqui pra elogir de novo

Splanchnizomai abraçando o amanhã. disse...

Ah! Se essas crianças soubessem que tem um Rosselini qu parou para pensar nelas.. e trazer esta beleza para nós. Coisa de gente grande que tem coração de menino... Lindo Rosselini. Campos precisa disso...

Taí! Vou te acrescentar no "acompanho e comento". Posso? Bem, se não puder você me bloqueia. Um dia eu volto.
Campos precisa disso...

Splanchnizomai abraçando o amanhã. disse...

Que blog bom o seu. Nâo conhecia! Bom! Muito bom!

Rodrigo Rosselini disse...

Sim, Rosângela, claro que pode acompanhar, e principalmente comentar. Os comentários são o combustível de qualquer blog!!!

Anônimo disse...

É Rodrigo agora aguenta.A Discípula te descobriu,rs...Quem sabe agora deixa o Xacal em paz,quá-quá.

Splanchnizomai abraçando o amanhã. disse...

"Nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia..." .

Splanchnizomai abraçando o amanhã. disse...

Não fui eu quem deixei o Xacal em paz, foi ele quem me deixou.

Splanchnizomai abraçando o amanhã. disse...

Esses comentários são sempre de anônimos!

Splanchnizomai abraçando o amanhã. disse...

Ah! Amado poeta...
queria entender de vidro...
de cristal...

queria saber ler
transparência
de portal...

pois ainda não sei

se é bem
ou
se é mal.

Bom mesmo é ser poeta
e brincar lá no quintal.


melhor que ficar aqui:
- isto é bem? Ou isto é mal?

Ah! Amado poeta...
queria entender de vidro
mas de vidro de cristal...



olha a palavra? "wittrim"

Declaro que o Portal da Transparência será uma vitrine de Cristal!

E vou postar ... e apostar...

olha a palavra: dicie

Ana Paula Motta disse...

Tem um desafio pra voc~e no Todos os Sonhos de abril ou no Quarto de Segredos (o desafio é o mesmo), passa pra ver...